Introdução
Versão 0.0.9 - 2025-05-20
Infraestruturando
O que vai mandar no mundo atualmente vai ser refrigeração, eletricidade e informática.
-- Tião Miranda, compositor de Bezerra da Silva (no documentário Onde a Coruja Dorme).
Se estamos a tratar sobre infraestruturas, que tal começarmos justamente pelas questões "infraestruturais" sobre o que seria exatamente infraestrutura, datacenter e autonomia neste contexto?
O que é infraestrutura?
- Podemos entender "infra" como aquilo que vem abaixo, aquilo que apoia e fundamenta, serve de base.
- Ou seja, seria a "linha de base" ("baseline") a partir da qual outras atividades podem ser realizadas.
- Em resumo, aquilo que é básico e ao mesmo tempo estruturante para outras atividades poderia ser chamado de infraestrutural.
O que é digital?
- "Informações" são registros físicos, inscritos em algum lugar. In-forma, "forma intensa".
- Não existem num "firmamento" etéreo/metafísico.
- Uma das maneiras de registrar e processar "informação" é através de "dados", entendidos aqui como porções de "informação" codificadas. Uma das maneiras de codificar é através da "digitalização", que transforma informação em números "redondos" (exatos)1: 1, 2, 3...
- Não é porque não "vemos" ou "sentimos" a transmissão, o processamento e o armazenamento de dados que a computação é feita num plano não-material.
E o que seria infraestrutura digital?
- Trocando em miúdos, seria o que diz Tião Miranda, sem pôr nem tirar: Eletricidade, Informática e Refrigeração!
- A computação, isto é, o processamento, armazenamento e transmissão de informações, também ocorre em dispositivos físicos2.
Infraestruturas digitais são, portanto, muito físicas:
- Não existe "nuvem" de dados, mas sim algo mais parecido com "parques" de computadores, isto é, de máquinas físicas realizando o trabalho.
- Essas máquinas precisam de energia para funcionar. Elas precisam ser fabricadas, e para tanto elas requerem a mineração de vários materiais. Elas eventualmente deixam de funcionar e, quando não são mais consertadas, acabam indo para depósitos de lixo ou, com sorte, sendo recicladas.
- Os chamados "data centers", ou "centros de dados", são locais onde o processamento e o armazenamento de dados ocorrem de maneira mais "densa" do que por exemplo no seu computador pessoal ou dispositivo móvel.
- Quando alguém diz armazenar ou rodar na "nuvem", muito provavelmente está se referindo aos computadores de terceiros.
Quem detém as infraestruturas digitais hoje? E em qual modo de operação?
- Sucintamente, a maior parte da infraestrutura digital é construída e operada por imensas corporações multinacionais, muitas delas conhecidas pela alcunha de "Big Techs".
- As "Big Techs" operam dentro da lógica ultracapitalista, autoritária predatória: sugam "recursos" minerais, energéticos, humanos e informacionais.
- As infraestruturas estatais existem em menor grau, e tem sido reduzidas (isto é, desmanchadas) a cada dia numa imbricação com as Big Techs, dentro da lógica adicional de um capitalismo de vigilância estatal-privada.
Computação é a política por outros meios
- Arriscamos a afirmar que a computação antes de tudo (e infelizmente) tem sido usada como instrumento de controle social e guerra.
- Exemplos não faltam. Alguns deles:
- O uso de computação da IBM durante o holocausto nazista (tema abordado na CryptoRave de 2019).
- O "Infopocalipse" dos recentes bombardeios em Gaza, intensificados pela seleção de alvos automatizada (tema abordado na CryptoRave 2024).
- A análise do processo de digitalização como iniciativa de aumento de controle, e não aumento de "qualidade".
- Mas isso não significa que computação é só isso: podemos nos apropriar dela para os nossos intentos.
O que seriam então "infraestruturas autônomas, livre e comunitárias"?
- Numa primeira formulação, seriam aquelas cujo controle está nas mãos de grupos e comunidades e não nas de governos e corporações.
- E que não operariam seguindo as mesmas lógicas tristes de opressão e destruição, e sim pelo controle popular em contraponto aos controles estatais e corporativos.
- Em resumo, seriam as infraestruturas feitas mais "do nosso jeito", como diz TC Silva.
Por que hospedar nossa própria infra?
Alguns motivos básicos:
- Nossos dados, nossa infra: precisamos ter uma infra nossa, por nós e para nós.
- As infraestruturas autônomas livres e comunitárias são inclusive uma maneira de refrear as atuais e absurdas tendências de crescimento das infraestruturas autoritárias das "Big Techs".
- Em resumo, infras autônomas livres e comunitárias tanto estão alinhadas com princípios de bem viver e autodeterminação dos povos quanto podem enfrentar as tendências autoritárias, centralizadoras e anti-ambientais das "Big Techs".
Mas de quais tendências históricas estamos falando?
Tendências tristes
Aquilo que tem sido chamado de "datasfera" (em analogia com "atmosfera", "biosfera" etc) seria compostas por pontas (dispositivos pessoais etc), bordas (dispositivos intermediários, como datacenters regionais) e núcleos (os imensos datacenters):
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Hoje há uma forte tendência atual à centralização desmesurada, com o desmanche de datacenters locais, com pontas e bordas cada vez menos "densas" em termos de quantidade de computação. A densificação dos núcleos corporativos implica que as corporações tem cada vez mais controle sobre a computação realizada.
E o que dizer sobre o crescimento da "datasfera"? A seguir, um gráfico da quantidade de dados criados por ano, em zettabytes (ZB), segundo Buss et al. (2019). Os valores para 2025 em diante são projeções3:
E o consumo de energia também só aumenta, conforme o gráfico a seguir do consumo anual de energia em TWh por Tecnologias de Comunicação, estimado por Andrae e Edler (2015)3. Em 2030, a computação poderá usar até 51% da eletricidade global:
O quadro atual e ainda pior quando consideramos a pegada ambiental das grandes infrastruturas digitais das grandes corporações. Segundo Siddik et al. (2021) a maior parte dos datacenters localizados nos EUA estao em areas com escassez de agua[^consumo-agua-datacenter].
E como estamos na America Latina? Nao muito melhor, pois em 2015 Google instalou um data center durante a pior seca da historia do Uruguay, uma infrastrutura com consumo estimado de agua em 7 milhoes de litros por dia (o equivalente a 55 mil pessoas) [^google-uruguay].
Será que precisamos mesmo de tantos dados e de tanta computação assim para vivermos de forma digna e respeitosa com o ambiente que nos dá a vida?
Questão de escala
A escala de todas essas tendências é assombrosa.
As "Big Techs" se colocam como únicas capazes de resolver todos esses "desafios", mas não podemos deixar de notar que tais "desafios" são impostos por elas mesmas, numa falsa dicotomia entre alta escala (que seria "eficiente") e baixa escala (que seria "ineficiente").
A questão da escala tem nuances que precisam ser consideradas para refutar o autoritarismo das "Big Techs":
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Por um lado, aumentar a escala da infraestrutura significaria datacenters cada vez maiores e mais concentrados, que implicariam em redução da força de trabalho humana e aumento de eficiência energética. Mas esta linha de argumentação tem sido falaciosa:
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Os ganhos de eficiência não tem reduzido o consumo, muito pelo contrário: o que acaba acontecendo é que os ganhos são reinvestidos, e o consumo acaba aumentando e intensificando! Cada vez mais conteúdo é produzido, mais computação é realizada e mais energia acaba sendo demandada!
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Espectro da Obsolescência: como se aproveitar dele pra erguer nossa infra! Muito lixo (que não é lixo) sendo gerado. Muita capacidade de reaproveitamento de máquinas desde que sejamos mais economicos nas demandas de banda (rede), disco (armazenamento) e poder computacional (o que reverte em economia de energia)
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Por outro lado, aumentar a escala pode significar uma maior quantidade de datacenters comunitários integrados e adaptados às necessidades e demandas locais, o que aumenta a difusão do conhecimento e a resiliência. Também facilita a identificação de quais computações são necessárias para o bem viver, o que pode reduzir as demandas energéticas, ao suprir necessidades ao invés de criá-las constantemente.
Importante também notar que a questão entre pequena versus grande escala também pode ser falaciosa, como se só fosse possível escolher entre uma dessas opções:
- Podemos pensar em arranjos sociotécnicos onde coexistam tanto datacenters grandes quanto pequenos, todos operados em regime coletivo e comunitário e adequados às necessidades socioambientais, respeitando os limites de recursos planetários.
- A economia de trabalho, energia e equipamento pode ser alcançada de várias maneiras, com investimentos em educação, software e hardware livres focados em durabilidade, reusabilidade e facilidade de manutenção.
Decrescimento e descomputação
Importante notar que o planeta não suportará uma taxa crescente de computação:
- A computação é parte fundamental (infra-estrutural) do desenvolvimento desenfreado.
- É necessário reduzir a quantidade de informação/computação produzidas com base em uma política cotidiana de decrescimento (do desenvolvimentismo tecnocientífico/econômico).
- Mais política, menos computação: precisamos definir quais são os problemas que precisamos resolver com computação, e quanta computação eles demandam. A computação não é a solução para todos os problemas.
- A retrocompatibilidade precisa ser levada mais em conta, ao invés do atual desperdício da alta obsolescência (vulgo extinção) técnica. As coisas não são ruins só por serem "antigas". Reciclagem também custa caro, mas se faz necessária.
"Descomputação" é um conceito novo, ainda em concepção, que merece ser discutido em detalhes, talvez num outro momento.
Por agora, basta considerarmos que infraestruturas autônomas comunitárias não precisam se basear na mesma lógica de intensificação computacional das "Big Techs", mas sim buscar tecnologias de organização e comunicação que ajudem na luta pelo decrescimento e pela justiça socio-ambiental.
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Aqui não entraremos na discussão sobre o que é "informação" e "dados" (conceitos abordados noutros materiais, como por exemplo neste texto crítico), nem sobre o que é "digital" (algo que fica para uma outra ocasião), mas torcemos que as breves e sucintas explicações aqui fornecidas sejam suficientes... ↩
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Estamos restringindo nossa conversa à computação de dados digitais. Vale considerar que existem outros tipos possíveis de computação, em geral chamada de computação "analógica". ↩